O Joker Dentro de Cada Um

Passado o frisson do lançamento, numerosas críticas e análises feitas por entendidos e desentendidos, além de tempo suficiente para adquirir direito a spoiler, resolvi dar o meu palpite. 

Não vou me atrever a fazer críticas sobre direção, cenário ou detalhes técnicos que não posso opinar por mera ignorância (apesar de ter me agradado de forma satisfatória). 

Também não vim falar da questão social muito bem colocada no filme (estaria a sociedade contribuindo para a formação dos transtornos mentais?) ou do estigma para com as doenças psiquiátricas: “A pior parte de ter uma doença mental é que as pessoas esperam que você se comporte como se não a tivesse.”. Entendo que esse assunto já foi esgotado e muito bem abordado em outros textos.

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Depois de ouvir várias críticas, elogios e comentários, fui estrategicamente assistir ao filme sozinha. 

Acabada a sessão fiquei lá, estática, imóvel, boquiaberta e com os olhos arregalados por pelo menos uns 5 minutos. 

O que foi isso?

O filme encerra com aplausos, aplausos a um “psicopata” que mata a sangue-frio e depois é colocado no trono e recebido como rei.

Então era isso?! Era isso que as pessoas estavam aplaudindo? Era disso que todos estavam falando? Não podia ser, estava errado. As pessoas não podiam estar se identificando com isso!

Podia sim. Demorei um tempo para digerir o filme e entender o efeito que ele causa.

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O que ninguém questiona é que o filme mexe com a gente. Saí de lá incomodada, desconfortável, inconformada. O filme é perturbador, vai fundo, transgride.

Todd Phillips arquitetou um contexto tão real, tão palpável e possível, que faz despertar em nós uma empatia absurda pelo personagem criado de forma impecável por Joaquin Phoenix.

Nos faz ser espelho, sentir a dor que ele sente e quando nos damos conta já estamos sofrendo junto com aquele pobre coitado que ri sem querer e é motivo de rizada.

Happy sofre, sofre muito. Tem uma vida de merda perdido em uma sociedade caótica, com uma mãe doente, um emprego ridículo e nenhum talento. 

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No decorrer do enredo é inevitável não se sensibilizar com aquela pessoa. 

Sim, pessoa. Joaquin Phoenix traz um personagem de carne e osso, que sofre, que ri, que sangra, adoece, faz esforço para achar um trabalho digno, se preocupa com a mãe e tem fraquezas e desejos. Desejos inclusive de matar. Ou vai me dizer que ele não tinha motivos?!

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Quer dizer que ele tinha razão?

Razão de querer matar?

Quer dizer que ele tinha desejos, desejos como todo mundo tem. 

Até que aquela linha tênue que o mantinha dentro da razão é rompida.

Há uma clara ruptura do ego, o filtro que regula nossos desejos mais profundos não deixando vir à tona nossos impulsos mais primitivos, e ele rompe com a realidade. 

Ri de nervoso, sofre de alegria, fuma para matar a fome e mata pra ser feliz.

Joker não tem nada de psicopata, mas é sim um baita psicótico. O personagem é tão bem construído que ainda traz consigo o afeto inadequado, a concretude, o prejuízo na cognição (ou tato) social, além de um autocuidado deplorável.

Todd Phillips da um banho de humanização no personagem que foi inicialmente desenhado para ocupar o papel de um vilão psicopata sádico. E por mais inadequado que seja, ele tem empatia. Tem sim. Só quem tem empatia pode despertar tanta empatia…

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A psicose é o ID à céu aberto, nosso lado mais negro sem filtros ou repressões.

O ID faz parte da nossa estrutura psíquica e está no inconsciente de casa um. Fica la, só existindo, remexendo de tempos em tempos, despertando desejos “absurdos”…

Vivemos em uma sociedade com regras e convenções. A gente nasce, cresce e amadurece ouvindo que “isso não pode”, “aquilo é errado”, ou que “não vai pegar bem”. Acabamos interiorizando isso, aprendendo, se condicionando, fortalecendo o ego…

É de consentimento geral, por exemplo, que bater e matar é errado. Não pode! Vai preso. 

Mas e o desejo, como ele fica?

Ele continua la, amordaçado, contido, escondido debaixo do tapete… Dentro de cada um.

Mas Happy, ao romper com a razão, compromete seu juízo crítico, deixa de compactuar com as normas e regras do mundo dos homens, cede aos seus desejos e concretamente elimina tudo que pudesse lhe causar dor.

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Mais do que qualquer coisa, Joker trata sobre o entendimento de ser humano, em toda a sua complexidade, desejos e loucuras mais íntimas. Joker sacode a poeira escondida debaixo do tapete e cutuca o ID da gente.

“Deixamos de verificar se havia monstros embaixo da cama quando percebemos que eles estavam dentro de nós”

O filme é perturbador por que faz a gente olhar mais é pra dentro da gente mesmo. E lá dentro pode ser assustador… 

Joker te provoca a se olhar no espelho despido de máscaras, armaduras, preconceitos ou premissas construídas por uma sociedade falha.

É ser o que se é. 

Ele era o palhaço e o palhaço era ele. Aquele era o seu próprio eu, sem máscaras.

E não poderia ser mais real.

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