Um pedacinho dos meus 3 meses de experiência na França
A cidade de Strasbourg lembra um cenário de filme, tudo tão limpo, calmo e perfeitamente conservado, que nem parece de verdade (muito menos que já passou por duas guerras). Só me convenci que tinha mesmo gente vivendo ali ao passar na frente de uma escola e me deparar com mães ansiosas paradas na frente do portão à espera dos pequenos que saíam à toda falando francês muito melhor que eu.
O prédio de psiquiatria do Centro Hospitalar Universitário de Strasbourg se localiza dentro de um complexo hospitalar datado do século XVI e em constante reforma. É dividido em 4 unidades: duas unidades de internação involuntária, uma unidade de internação voluntária e o hospital dia.
A primeira parte do meu estágio se passou na Unidade de Internação Voluntária e o primeiro dia não poderia ter começado de jeito mais típico: com Jet leg. Meu corpo definitivamente não queria aceitar que estava na França. Acordei atrasada, claro, às pressas, mas cheguei. O chefe me esperava. Toda a equipe tinha sido avisada da minha chegada e como previsto, fui apresentada na reunião do Staff com muito louvor. Logo no primeiro dia já fui agraciada com um crachá e as chaves do serviço que me davam acesso à todas as portas.
A reunião do “Staff” ocorre toda sexta-feira com a participação de todos os chefes das unidades, residentes e acadêmicos para discutir sobre as entradas dos novos pacientes e altas dos serviços. A hierarquia é algo definitivamente digno de nota e totalmente instintivo para eles. Como em uma escada está: o acadêmico, o residente, o chefe da unidade e o chefe do serviço. Quando o que está à frente da hierarquia fala, os outros não abrem a boca. Isso define também onde cada um pode se assentar durantes as reuniões e até com quem você pode assentar na hora do almoço.
A Rotina é rígida, extremamente bem preestabelecida e são incrivelmente pontuais! Se tem uma reunião marcada às 9 horas, certamente às 9:10 já terá começado, mesmo que nem o chefe do serviço não esteja presente.
As normas e rotinas do serviço são seguidas fielmente sem pestanejar, tudo como dita a cartilha, de forma previsível, controlada e organizada como um passo de dança. O dia inicia sempre com uma “transmissão de plantão” muito bem sistematizada, onde um dos profissionais da enfermagem conduz e coloca em pauta, não só as intercorrências do plantão, mas também a programação e os afazeres previstos para aquele dia.
Só depois o dia começa: admissões, exames e entrevistas programadas. Cada residente tem seu escritório com seu computador, seu telefone e ramal individual. Falo de dedicação realmente exclusiva, nos 06 meses em que estarão naquele serviço terão sua atenção toda focada ali.
O paciente recebe a indicação de internação pelo psiquiatra tratante que deverá entrar em contato com o serviço solicitando a vaga. Quando um paciente chega ele é recebido pela equipe de enfermagem que lhe apresenta o serviço, as normas e faz o primeiro atendimento. Só depois é avaliado pelo residente que faz a entrevista (anamnese) enquanto o acadêmico digita e faz o exame físico.
Os franceses que estão sempre com pressa fazem o tempo parar naqueles próximos minutos. Gastam o tempo que for preciso para avaliar, ouvir e compreender o paciente. O silêncio não é um problema, não incomoda. São capazes de fazer longos períodos de silêncio em que apenas ficam ali parados, olhando para o paciente, como quem aguarda que o outro acabe uma reflexão importante, e só depois, calmamente, é que retomam a entrevista.
Não só o dia mas a semana é organizada em torno de reuniões. Na terça-feira é reunião multidisciplinar da unidade e na sexta-feira a reunião do Staff que já citei acima. Soa cansativo, mas eles são pontuais não só para começar, mas também para terminar e são extremamente objetivos nas discussões. Tratam dos pontos que lhes dizem respeito e depois se levantam e vão embora. Não tem tempo perdido.
Na quarta-feira tem corrida de leito com o chefe do serviço, o grande ponto alto! Conviver com um “Chef” foi realmente um privilégio. Sempre o primeiro a chegar e o último a sair, sempre disponível, solícito e muito, mas muito, polido. A polidez do francês é reconhecida mundialmente. Você não pode nunca iniciar um diálogo sem antes pedir licença e dar bom dia e, se a pessoa estiver na sua frente na hierarquia, chamar por “vous”. A elegância no discurso também está presente nas infinitas reuniões e discussões de caso, dificilmente um francês “perde a linha”.
Os franceses tem uma forma de tratamento bem diferente da nossa, falo da linguagem mesmo. Eles tratam os pacientes sempre por “Vous”, seria algo próximo à senhora/ senhor, que demonstra respeito mas também coloca um certo nível de distanciamento na relação. Durante a corrida de leito os casos de referência do Chef eram todos bem discutidos com muito primor e descrito de forma poética. Em uma das corridas de leito, disse ele a um paciente: “Nós já avançamos muito em matéria de paciência, esperamos que você avance também nos seus esforços”, disse ele ao paciente que já tinha indicação de alta há meses mas que não aceitava nenhuma proposta de alojamento trazida pela assistente social.
A assistência social na França talvez seja o que mais distancie o serviço deles do nosso. Eles têm realmente um suporte incrível de moradia, cuidador e tudo mais às mãos. O problema é que o serviço de hotelaria do hospital é tão bom que os pacientes entram e não querem mais sair. Outro ponto marcante são os medicamentos: não há restrições. Você não medica o paciente “com o que tem”, mas com o que deve, pois tudo está disponível.
Não é atoa que a unidade de internação voluntária tem uma longa fila de espera. Ela conta também com uma assistência especializada para casos de dependência em álcool e drogas e transtornos alimentares. Cada paciente recebe logo após a sua chegada um planejamento com as atividades “prescritas” pelo médico especialista de acordo com as necessidades e capacidades individuais de cada um. É aí que entra o Hospital Dia, o local onde a maioria dessas atividades são realizadas e vão desde atividades na piscina, dança, grupo de psicoeducação, sociodrama, cursos de informática, culinária, manicure, até as várias psicoterapias em grupo, entre outros.
O contexto sociocultural na França é bem diferente do nosso. Pra começo de conversa estudar na França é obrigatório, estando os pais sujeitos a prestar depoimento às autoridades e até serem presos no caso de ausência prolongada dos filhos na escola. O alto grau de instrução faz com que os pacientes tenham um nível de compreensão da doença incrivelmente alto e em geral uma boa adesão às normas e regras do serviço, sempre respeitando e seguindo o que foi acordado. Quando são admitidos assinam um contrato que assinala o que é e não é permitido e quando não seguem, são convidados a sair.
Os protocolos e manuais diagnósticos de referência são praticamente os mesmos que os nossos, o que os diferenciam mesmo é a organização e isso vem de berço. Nunca ouvi tanto os verbos: prever, planejar, organizar… Eu diria que as palavras chaves do francês são: planejamento, horário, normas, hierarquia e educação. Eles partem sempre do “Princípio da Precaução”, tornando tudo o mais previsível e passível de controle.
É realmente impressionante o quanto a cultura determina a forma de linguagem que altera consequentemente toda a dinâmica de uma sociedade e de um serviço.
Poderia escrever mais um mês e meio de experiência, mas se tornaria muito cansativa para um só texto. Várias outras situações como aborto, uso de heroína, internação para cessar tabagismo, ECT, atentado, entre outras coisas interessantes vou abordando ao longo do tempo. Caso se interessem por algum desses assuntos, ou outros já citados, pode entrar em contato comigo inbox.
Até o próximo voo!
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